segunda-feira, 19 de abril de 2010

A demolição da Casa Mourisca

Anos atrás, no início da década de 80 - não sei precisar quando - escrevi o poema 'A Demolição da Casa Mourisca'.
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A casa, em questão, era um dos casarões da Avenida Paulista, em São Paulo, que estava na mira da Secretária da Cultura para ser tombada pelo patrimônio histórico e foi demolida pelos proprietários para evitar o tombamento.
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Pela sua beleza, seu valor arquitetônico e histórico criou-se uma resistência contra a sua demolição porque três outras casas já haviam sido demolidas pelo mesmo motivo.
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Briga pra cá, briga pra lá, uma madrugada, ao retornar de táxi pra casa, fui testemunha do início da demolição.
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Vi de perto o 'Senhor Capitalismo' trabalhando na calada da noite com todo o seu furor e ganância.
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Do táxi pude observar o interior do banheiro superior da casa, já que a parede estava no chão.
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Observei também uma das salas do térreo, sem parede.
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O jardim, antes lindo, cheio de entulhos.
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E eu comecei a pensar nas pessoas que nela viveram... independente de questões político-sociais.

O táxi seguiu, a casa morrendo... o poema nasceu.

Assim:

O que farão com o tempo que passa na Casa Mourisca?
Passarão uma borracha, jogarão borrão de tinta?

O que farão com as paredes que erguem a Casa Mourisca?
Erguerão um novo templo, contando histórias vividas?

O que farão com o telhado que cobre a casa Mourisca?
Construirão novos abrigos, por todos os seus sentidos?

E os fantasmas das avós que habitam a casa Mourisca?
Gostarão do espigão que ali será erguido?

E o choro da criança aflita que enche a casa Mourisca?
Chorará na eternidade entre o concreto e o vidro?

E o rangido das portas antigas que assustam na Casa Mourisca?
Habituarão com o óleo que virá nas dobradiças?

O que farão com os afetos que dormem na Casa Mourisca?
Acordarão com o barulho do martelo demolindo?

O que farão com os sonhos que vagam na Casa Mourisca?
Colocarão num caixote, jogarão numa piscina?

O que farão com os mortos que jazem na Casa Mourisca?
Desenterrarão os seus ossos, levarão para a polícia?

E os beijos apaixonados que estalam na Casa Mourisca?
Agüentarão os estalos da máquina de datilografia?

E os abraços fogosos que aquecem a Casa Mourisca?
Não ficarão resfriados com o frio do alumínio?

E os coitos angustiados que marcam a Casa Mourisca?
Não ficarão sem orgasmo no frio da secretaria?

O que farão com a vida que foi a Casa Mourisca?
Transformarão em poeira, queimarão os registros?

O que farão do orgulho do rosto da Casa Mourisca?
Baterão com o ferro, racharão sua superfície?

O que farão com os cantos que cantam na Casa Mourisca?
Levarão pra praça pública, condensarão em um disco?

E o chá das quatro horas que alegra a casa Mourisca?
Será transformado em café, comprado na padaria?

E os jantares de gala que cheiram na Casa Mourisca?
Sucumbirão perante o queijo, o presunto e a lingüiça?

E os talheres de prata que brilham na Casa Mourisca?
Perderão todo o seu brilho, será o mesmo que lixo?

O que será deste mundo de todas as casas Mourisca?
Também não será respeitado, também não terá justiça?

O que será desses homens que roubam a casa Mourisca?
Viverão impunemente seus dias de confraria?

O que será desses homens que matam a casa Mourisca?
Receberão no fim do mês seus salários de assassinos?

O que será de nós todos, amigos da Casa Mourisca?
Choraremos sua queda, pra esquecer em seguida?

Enfim, foi só uma casa... só um poema!

Mas às vezes a vida nos chama às falas!

E, de uma maneira ou outra, temos que conversar.

Foi o que fiz!

Um comentário:

Paulo Rocha disse...

Hoje existe apenas um estacionamento, que coisa triste algo belo deu lugar a comodidade de algumas pessoas...isso é cruel