segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Dores de amor

É lei: macho lava a honra com sangue!

Miguelinho, desde criança, vivenciou isto, porque o pai, Miguelão - na sua frente - enfiou a faca na garganta da mãe, Cletilda, porque ela chamou-lhe frouxo.

Miguelinho cresceu assim: dividido entre a macheza do pai e a ausência da mãe que, pela voz do pai - em cana - sempre foi uma vaca, uma depravada, uma filha da puta, uma vadia mal-agradecida e desalmada.

Ouvia estas merdas e, ainda por cima, bebia umas cachaças... quase sempre o dia inteiro.

Desocupado, o maior trabalho era vigiar Vandilsa - prima - que ele, na escala dos relacionamentos humanos - de parentes - classificou como 'sua'.

Vandilsa não sabia, mas lhe pertencia.

Ele a vigiava de longe: sabia seus horários, seus hábitos, sabia a cor dos cabelos, do sapato, do lenço, do batom, do vestido e, às vezes, a cor da calcinha.

Sabia a que horas ela levantava, a cor da camisola, o que comia no café da manhã, o que comia no almoço, qual novela, qual música, qual livro, qual vestido, como passava o dia... quantas vezes respirava por minuto.

Se ocupava com isto se alimentado do salário mínino que a avó, Anilda, recebia do INSS.

Se entrincheirava na praça, de manhã, na frente da casa de Vandilsa e fazia, mentalmente, o relatório do dia.

06:45: escola, com a amiga Lísia.
09:30: recreio, uma coxinha no boteco do Zélio.
12:00: chegava em casa, jogava a bolsa no sofá.
12:30: almoço, sempre com suco de laranja.
14:00: saída, para estudar com Lísia.
16:00: retorno para casa, banho.
17:00: televisão, resto de sessão da tarde.
19:00: jantar, sempre com uma saladinha de alface.
20:00: Jornal Nacional.
21:00: novela, sempre na Globo.
22:30: cama, com a camisolinha branca.
05:30: fora da cama, banho.
06:00: café da manhã, sempre uma bolachinha de chocolate.
06:45: escola, com a amiga Lísia.

Aparência: cabelo liso - loiro; um brinco de pérola - pequeno; uma miniblusa verde - indecente; o umbiguinho de fora - lindo; uma sainha jeans - minúscula; uma calcinha vermelha - ínfima (às vezes se via); uma sandalhinha da Xuxa - azul... um jeitinho de sem-vergonha - piranha mesmo - estampado no rosto.

E descia a rua.

Miguelinho acompanhava de longe.

Isto já rolava há 07 anos, sigilo absoluto; nem o maior do maior do maior dos amigos sonhava tal obsessão.

Uma boca de noite, Miguelinho, desta vez sem estar de guarda, vinha descendo a rua e deu de cara com Vandilsa entrando num carro preto - Celta.

O cabelo liso - loiro; o brinco de pérola - pequeno; a miniblusa verde - indecente; o umbiguinho de fora - lindo; a sainha jeans - minúscula; a calcinha vermelha - ínfima; a sandalhinha da Xuxa - azul... uma jeitinho de sem-vergonha - piranha mesmo - estampado no rosto.

Bambeou as pernas, sentiu um troço na cabeça, e saiu correndo atrás do carro.

15 minutos depois, parou.

Vandilsa sumira no escuro da noite.

Tontura, arrepio, pernas moles, angústia, desespero, dor, agonia, infelicidade, tristeza, ansiedade, caralho, porra, filho da puta, cê me paga, cadela, vadia, corno, bandido, sem-vergonha, isto não fica assim, eu mato, arrebento, ninguém mexe com mulher minha, safada, vaca, ordinária, vagabunda... puta!

E não foi pra casa esta noite.

Fincou pé na praça, frente da casa de Vandilsa - a faca na cintura.

Não viu quando o carro preto - Celta - chegou, porque cochilava.

Nem quando ele partiu deixando Vandilsa depois de um longo e demorado amasso no banco de trás do carro.

Acordou, sem saber onde estava, com a janela do quarto de Vandilsa ainda iluminada.

Olhou o relógio: 04:23 da manhã.

Levantou-se - nada mais a fazer - caminhou pela rua e sentiu na pele o que é a dor do ciúme, a dor de corno, a dor de macho desprezado... a dor do amor.

A faca cutucava o estômago, o coração, o fígado, o pâncreas, o baço, os rins... a alma.

Pensou no pai que lavara a honra com muito sangue.

O estômago embrulhou.

Em casa, vomitou até as tripas - como se diz na gíria.

- Vandilsa flutuava dentro da sua cabeça com a agônica sainha jeans - meu Deus!, o angustiante umbiguinho lindo - meu Deus!, a sua cara de vaca, depravada, filha da puta, vadia mal-agradecida... e desalmada!

Sentiu-se frouxo, sem ninguém para chamá-lo disto.

E pela primeira vez ficou pensando se sua mãe não tinha razão em relação ao seu pai.

Deitou-se, enfiou o dedão na boca, colocou-se em posição fetal e choramingou baixinho a ausência da mãe.

E não dormiu!

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