sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Nada existe

Meus anseios são paralelos
à minha realidade.

Nada existe
preconcebido em meu ser
nem eu
nem você
nem esta rua nua
esta luz opaca
este desejo no rosto
este ventinho manso
esta noite preocupada
esta mulher tranquila
de bolsa na mão
cigarro na boca
esta dedicação pura
sensível
que vejo em olhos
em mãos
em bocas
esta coragem vadia
desta meta
deste rumo
destes passos firmes
decididos
em busca da honra do homem
da glória do homem
pendurada no mastro
que o povo ergueu.

Se eu me perguntasse agora:
alguma coisa existe?
Eu não responderia
não ousaria encarar face a face
a pergunta dura
desumana
de alguém que não existe
pois nada existe em meus olhos
nem perguntas
nem respostas
nem angústias
nem o desespero maduro
preciso
destes olhos ariscos
que nada veem
nada sentem
dentro do corpo preguiçoso
cansado desta noite
de estrelas no céu
Deus no céu.

Nada existe:
nem a dedicação espontânea
de uma mão na cabeça
de um sorriso largo
uma palavra de conforto
um caminho com Deus
um volte logo.

Nada existe
em meus olhos noturnos
nem rimas
nem poesias
nem poetas
(o poeta está prestes
a se atirar no rio)
nem morte
nem vida
nem meio termo
nem esta necessidade humana
impossível
de caminhar
chorarso
rrir
encarar a matéria cara a cara.

Nada existe
eu sei
porque se existisse
eu caminharia agora
alegre
tranquilo
para minha casa.

Não perguntaria o rumo
rumaria mecanicamente
não bateria
entraria
sentaria
tomaria um café fresco
fumaria um cigarro
jogaria as cinzas no chão
conversaria com minha mãe
meu pai
meu irmão
meu vizinho
que na certa
estariam sentados
na poltrona da sala
comendo televisão.

Entraria no quarto
tiraria esta gravata miserável
que me sufoca
e meu diz na cara:
você não é feliz!

Nada existe:
nem eu
nem você nem minha casa
nem minha mãe
nem meu pai
nem meu irmão
nem meu vizinho
nem a poltrona
nem a televisão
nem a gravata
nem o quarto
nem esta angústia.

Apenas conheço
este chão miserável onde piso
estas filas imensas
compridas
que esperam o amanhecer
de um novo dia.

Já não acredito em esperas
procuras
novos dias
deixo minha mente velha
intranquila
caminhar por sí só
rumo a qualquer lugar
procurando qualquer coisa
um parque de diversões
um circo
um cinema
um jardim
uma brincadeira de criança
mil coisas inocentes
e puras.

Nada existe:
nem eu nem ninguém
nem este quarto
aonde mecanicamente cheguei
me sentei
me vi como um miserável
à procura de abrigo
uma fatia de pão.

Tenho na pele
este medo miserável
deste tempo miserável
que se extingue miseravelmente
na abertura da janela.

Nada existe
eu sei
não me importo!

Quero neste instante
tirar esta roupa miserável
deitar nesta cama miserável
tentar na inexistência de argumentos
de justificativas
construir neste sono miserável
o sonho miserável
deste miserável ser
que apesar de sentir
que nada existe
ama com toda a fúria do adolescente
a vida
que jorra incessantemente
pela noite afora.

.
TõeRoberto-05:148-são paulo/sp-17junho1974

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